Manifesto: Além da municipalização da cultura, a caminho da democracia cultural

Municipalização da cultura:
A supervisão da ação cultural pelos municípios. 

Democracia cultural:
Cultura para, com e por todas as pessoas.

Preâmbulo

No ano dedicado à Comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, o grupo Periferias Centrais realça a importância do ideal democrático de uma política pública cultural. Nesse sentido, é urgente respeitarmos as determinações da Constituição da República Portuguesa, que atribui responsabilidades específicas ao poder político, aos profissionais da cultura e aos cidadãos. Nomeadamente:

Art.43º – Liberdade de aprender e ensinar

2) O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.

Artigo 78.º – Fruição e criação cultural

1)Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural.

As Periferias Centrais consideram que a qualidade da democracia política está intimamente ligada à qualidade da democracia cultural – e, consequentemente, a uma participação cidadã, plural e equitativa. Acreditamos que a Cultura e as Artes servem melhor a sociedade quando criam um espaço de discordância, de ativismo e de crítica aos poderes instituídos; um espaço para transformações sociais; um espaço de respeito.

Manifesto

A vitalidade da cultura depende da colaboração entre profissionais da cultura e poder político – nomeadamente, os municípios -, o que não significa a sobreposição das responsabilidades específicas de cada uma destas partes.

Além disso, ambas as partes devem valorizar e zelar pela criação de condições para uma participação efetiva dos cidadãos, promovendo e apoiando a liberdade de escolher que cultura fazer e que cultura apreciar.

Quem somos como sociedade e que futuro queremos construir? As propostas que se seguem têm como objetivo permitir que os agentes culturais – profissionais da cultura, municípios e cidadãos – possam olhar para os lugares onde vivem e possam imaginar juntos transformações moldadas graças à criatividade de cada um.

Sendo assim:

Enquanto profissionais da cultura, importa

  • Ser claro, transparente e fiel ao que se faz e ao porquê de o fazer.
  • Valorizar o trabalho colaborativo e em rede entre profissionais da cultura, contrariando a lógica de “cada um por si”, muito alimentada por um sistema de financiamento de competição. O objectivo é fortalecer e melhorar o funcionamento do sector – através da partilha de recursos, identificação de necessidades, organização e compromisso colectivo, reflexão e crítica.
  • Não se limitar a agradar aos municípios, ajustando a sua ação e contributo ao que seria mais facilmente aceite e aprovado.
  • Estar disponível para desenvolver estratégias de colaboração com os municípios que permitam um acesso cada vez mais amplo às artes e à cultura.
  • Investir no desenvolvimento de projetos inovadores, do ponto de vista artístico, que possam enriquecer as vidas de todas as pessoas, evitando alimentar uma ideia de cultura única e “oficial”.
  • Assumir também o desafio de projetos dirigidos a nichos, garantindo a participação de pessoas menos ouvidas ou que pertencem a minorias. Muitas vezes, é a partir dos nichos que se inicia algo maior.
  • Contrariar a necessidade de “explicar” ou “traduzir” para as pessoas o que se faz e porque é que é bom para elas, perpetuando atitudes paternalistas e dirigistas.

Enquanto municípios/poder público, importa

  • Promover a elaboração de Planos Estratégicos de Cultura, baseados na pesquisa científica e no contributo dos profissionais da cultura e dos cidadãos, na sua diversidade e representatividade. Garantir, ainda, que a sua implementação seja munida de recursos humanos e financeiros adequados.
  • Criar as condições necessárias ao desenvolvimento cultural, artístico e criativo do território, através da criação, abertura e efetiva utilização de gabinetes locais. Estes gabinetes devem estar dotados com técnicos com formação adequada sobre estas matérias.
  • Diversificar os apoios e incentivar a pluralidade dos projetos culturais, tornando os processos menos burocráticos.
  • Contrariar os seus preconceitos em relação a projetos que consideram de nichos. Por um lado, porque a democracia baseia-se e torna-se mais forte com a pluralidade de visões e práticas; por outro, porque estes nichos iniciam, muitas vezes, alterações muito necessárias de padrões sociais.
  • Facilitar a apropriação e utilização de espaços públicos para práticas culturais, bem como facilitar e mediar o uso de imóveis devolutos (públicos e privados) para os mesmos fins.
  • Autolimitar-se no uso do poder, para que ele não se torne absoluto e arbitrário.

Por fim, na colaboração entre municípios e profissionais da cultura, importa

  • Cumprir, defender, implementar, promover e divulgar a interdependência entre direitos, liberdades e garantias: direitos culturais / direitos humanos / direito à cidade / direito à habitação / direito ao ambiente.
  • Incentivar o desenvolvimento de um ecossistema cultural intra-municipal e extra-municipal e usar, efectivamente, redes de governação conjunta (como os Conselhos Municipais de Cultura, outras redes e fóruns) para a discussão das políticas culturais, que suscitem a participação, o debate e a produção de recomendações na elaboração dos Planos Estratégicos de Cultura.
  • Empenhar-se na partilha pública de informação relevante para o exercício da democracia cultural, bem como promover projetos de comunicação / jornalismo cultural.
  • Contrariar o preconceito de que a população não entende a arte e que, como tal, determinados objetos e projetos não devem ser propostos a certas pessoas e comunidades.
  • Desenvolver estratégias e disponibilizar ferramentas, orientações e informações que permitam chegar com qualidade à diversidade de pessoas em cada território.
  • Como municípios, não programar, em conformidade com o Artº 43, 2 da Constituição da República Portuguesa; como profissionais da cultura, a quem cabe a função de programar, comprometer-se em ir além dos seus interesses pessoais, em prol do enriquecimento das dinâmicas culturais e da coesão e desenvolvimento territorial.