Mapeando o manifesto: “O diálogo como base da democracia cultural”

Uma entrevista com Fértil Cultural | Rui Leitão
Foto: Margarida Ribeiro

De que forma a noção de democracia cultural orienta o teu trabalho e a tua prática?

A criação da Fértil Cultural parte, sobretudo, da ambição de duas pessoas, Neusa Fangueiro (actriz) e Rui Leitão (antropólogo). O facto de cada um vir de formações diferentes permitiu a criação de uma simbiose entre a arte e ciência muito peculiar. O olhar antropológico como ponto de partida para as suas criações, ou projectos a desenvolver com diferentes comunidades tornou-se num ponto diferenciador deste projecto. Assim como as criações e trabalhos com comunidades permitiram o desenvolvimento de um pensamento crítico dentro da estrutura sobre isto a que chamamos de democracia cultural.

Desde o acto de constituição da associação, definimos o nosso objecto de trabalho em apenas três palavras: arte, educação e cultura. Acreditamos e afirmamos na nossa apresentação que estes três elementos são os pilares do desenvolvimento humano como seres produtores de cultura e sabedoria. Tentamos, ao longo de quase 14 anos, que estas três palavras nos instruísse, como criadores e mediadores, de como podemos desenvolver um trabalho que permitisse a quem se relaciona connosco de pensarmos nisto a que se chama democracia cultural. Na prática dispusemos o nosso trabalho ao serviço do público, ou participantes em criações, de uma forma simbiótica e de dádiva, em que em contrapartida transformaríamos os seus contributos em materiais a serem trabalhados em futuras criações. Cada espectáculo nosso surge, de uma forma ou de outra, de pensamentos críticos de quem se cruza connosco.

No caso concreto de projectos que desenvolvemos com as comunidades começamos sempre com uma assembleia de auscultação de todos os intervenientes. Nada mais representativo de uma democracia do que uma assembleia. E fomos percebendo ao longo dos tempos, que esta nossa prática permitiu a muita gente, novos e graúdos, interpretar melhor a importância do modelo representativo em assembleia.

As iniciativas de diálogo e debate são uma constante no nosso trabalho. Fazemo-lo com uma grande frequência em momentos tão diversos como conversas pós-espectáculo, debates programados, serviços educativos ou apenas o apoio a instituições como o caso de escolas. Acreditamos no diálogo como a forma mais democrática de podermos desenvolver o nosso trabalho.

Houve algo que tenha tornado esta noção central ao teu trabalho?

As formações de base de cada um dos directores, assim como as múltiplas formações e trabalhos com outros artistas, foram, sem dúvida, a principal ignição desta preocupação. Quando a Fértil surge, os seus mentores já traziam na bagagem preocupações bastante vincadas, uma delas era a grande assimetria que existe no país do acesso à cultura como participantes, a outra a falta de um espaço de experimentação e criação artística para que pessoas que nunca tenham participado num processo de criação pudessem sentir, desenvolver e expor o seu valor criativo.

Este dois pontos são ainda uma luta para nós. Tentamos sempre que as nossas criações possam ser apresentadas tanto nos melhores auditórios como num salão paroquial com a mesma dignidade e pertinência artística. É também uma luta muito grande a angariação de apoios decentes para o desenvolvimento de criações com diferentes comunidades. Estes projectos são muitas vezes vistos como menores e de relevância dúbia por parte de alguns agentes políticos, que, para nós, são os principais financiadores destes trabalhos.

Quais são as referências que escolhes para falar do teu trabalho? Fala-nos de outros projetos, referências culturais, exemplos concretos de casos que te inspiram a fazer melhor.

Esta é uma resposta muito clara para nós. Ao longo de mais de um ano fomos maturando a ideia do que queríamos fazer. Durante esse tempo pesquisamos e trocamos ideias com 4 estruturas que para nós fazia, e continua a fazer, sentido. Todas elas por razões diferentes. O Teatro do Montemuro, companhia onde a Neusa Fangueiro trabalhava enquanto desenvolvemos o projecto. Foi também a companhia que nos deu o primeiro grande apoio. Desde logo, a cedência de espaços de trabalho e acolhimento da primeira criação. Depois a ACERT, pela sua dimensão comunitária e associativa. Esta estrutura é um exemplo claro de como as artes e a cultura pode dar tanto a um território. Quem conhece Tondela, conhece a ACERT, pois é lá que (quase) tudo acontece. Ainda como forma de trabalhar com os territórios, inspiramo-nos nas Comédias do Minho. Uma colectividade com características muito próprias, mas que antes de nos sediarmos em V. N. de Famalicão acreditávamos que podias fazer algo do género em outra região do país. Por fim, temos O Bando, também pela sua história e dimensão artística e de trabalho com várias comunidades.

Ao longo da nossa existência são vários os momentos de partilha com cada uma destas estruturas. São ainda, para nós, não só inspiração, mas também camaradas com quem podemos contar a qualquer momento.


Sobre a Fértil Cultural

A Fértil Cultural surge do encontro entre o teatro e a antropologia, duas formas de olhar para o ser humano como produtor de cultura e de questionar a sua condição de vida. Em 2010 é fundada a associação com o propósito de dar voz às criações e investigações que partam desse princípio. As criações da Fértil assentam essencialmente no teatro e na sua relação com as outras formas artísticas.

O teatro é por excelência o laboratório onde se permite a experimentação do nosso trabalho. Privilegiando as criações originais, permite-nos, como criadores, uma melhor abordagem às mais diferentes temáticas e a adequação destas ao nosso propósito, assim como a afirmação dos artistas envolvidos. É aqui que nos expressamos e onde partilhamos o nosso pensamento com o outro.

O objecto de trabalho da Fértil – arte, educação e cultura – é a base de desenvolvimento de todos os seres humanos, independentemente da sua etnia ou cultura. Estes três pontos são horizontais e pertencem a todos nós num formato não hierárquico. Acreditando nas capacidades de todos, a Fértil pretende desenvolver os seus trabalhos numa forma simbiótica de dádiva, partilhando os seus conhecimentos e aprendendo com os conhecimentos dos outros.